terça-feira, 23 de novembro de 2010

Alicerce da vida

Sou de um tempo em que casamento era para a vida toda. Um tempo em que a união de duas pessoas era o alicerce para a construção de um lar e uma família verdadeira. Cresci acreditando nisso e tive como exemplo vivo a vida a dois de meus pais, que por mais de meio século formaram um casal exemplar.

As regras básicas que regem a união perante Deus eram encontradas com facilidade no seio daquela união. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, e por aí afora. Tudo isso fez parte da vida a dois dessas duas criaturas que me colocaram nesse mundo.

Quando vejo um casal já com os cabelos pintados pelo tempo, a pele marcada pela longevidade e o corpo arcado pelo peso dos anos e das dificuldades por eles imposta vem à minha memória a cena de meus pais sentados na porta de casa, sempre juntos, sempre com algum assunto para conversar. E não tem como segurar as lágrimas e o nó que se instala na garganta.

O tempo é cruel e implacável e nos leva tudo que temos. Somente a lembrança doída, mas ao mesmo tempo gostosa, é que permanece.

E é nesse tempo de aproximação das festas natalinas que essa lembrança fica mais viva. Voltam à tona os tempos felizes em que aquele menino magricela de orelhas grandes ficava com o coraçãozinho repleto de felicidade pela ansiedade que tomava conta na espera pelo Natal.

São tempos que não voltam mais, que guardo em minha memória como cristais indestrutíveis. Capazes de iluminar minhas lembranças e colocar à minha frente cenas que me fazem chorar e rir ao mesmo tempo.

É como se eu pudesse ver o presente atrás da porta, perto dos sapatos colocados na noite anterior junto com o capim e a água para os burrinhos do Papai Noel, como dizia minha mãe.

Relembrar tudo isso, apesar da triste constatação de que não é possível entrar no túnel de tempo e retroceder, revigora minhas forças para a batalha em busca da paz e da felicidade. Busco naquele tempo o que é necessário para seguir em frente no caminho da vida, aplicando na educação de minha pequena Mariane os ensinamentos que tive enquanto criança.

Se um dia Deus me permitir reencontrar meus pais e lhes dirigir algumas palavras, com certeza direi obrigado. Obrigado pela educação que me foi dada, pelo sentimento de respeito pelas pessoas, pelos momentos – e não foram poucos – em que encheram meu coração de alegria.


E, mais que tudo, pedirei perdão. Perdão por não ter feito por eles tudo o que mereciam.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Vassouradas de cal

Sou de um tempo em que minha família se reunia nas festas de Natal e Ano Novo. Um tempo feliz, em que nos reuníamos na casa de meus avós paternos, no alto da Vila Pereira, bem pertinho do Bairral.

Lembro bem dos afazeres de minha mãe no preparo dos doces nos dias que antecediam as festas de final de ano. O clima natalino, bem mais intenso que nos dias atuais, era algo que encantava e enchia nossos corações de alegria.

A expectativa pela chegada das festas e pela reunião que acontecia para o almoço no rancho, bem ao lado da parreira de uva e do pé de limão galego, aumentava a cada dia. Para nós, crianças, havia também a espera pelos presentes de Natal.

A mesa grande ficava repleta de gente. No Natal, além dos meus avós, meus tios Ivan, José Rubens e Marly e de minha família, vinha também a família de minha tia Lia.

No Ano Novo era a vez da família de tia Shirley marcar presença. Sem contar os vizinhos e parentes mais próximos, que sempre apareciam para os cumprimentos, criando um clima ainda mais gostoso.

Diversos momentos daquela época são avivados em minha memória a cada Natal que chega. A saudade daquele tempo, bem diferente e mais feliz, chega a doer no cerne da alma.

Talvez seja por não ter mais a presença da grande maioria dos personagens que escreveram a história daquele menino magricela de orelhas grandes. Ou, então, por não tem mais o que comemorar, a não ser a presença de minha Mariane, um presente que Deus colocou em minha vida e por quem enfrento qualquer tipo de adversidade.

E, dentre tantas passagens felizes daquele tempo, uma não sai de minha memória. Lembro bem que era Ano Novo e que a casa de meu avô havia passado por uma pintura. No quintal havia uma caixa d’água com os restos da cal que havia sido utilizada na pintura.

Tudo começou após o almoço. Meu pai, meus tios e meu avô João passaram a fazer guerra de água. Lembro da cena do meu tio José Rubens, ainda seminarista, postado em cima do telhado com uma tigela cheia d’água, aguardando a primeira vítima passar por ali.

A brincadeira durou um bom tempo e, para completar a farra, meu avô foi a vítima. Com vassouras embebidas na cal, meu pai e meus tios pintaram meu avô de branco da cabeça aos pés, apesar dos protestos de minha avó, sempre avessa às brincadeiras.

Quando tudo terminou e todos estavam brancos como fantasmas, veio o pior. A guerra de água minou o reservatório da casa e não havia nem uma gota para o banho.

Sem alternativa para resolver o problema o jeito foi procurar uma solução do lado de fora. E o chuveiro do vestiário do velho estádio Chico Vieira, ao lado do parque Juca Mulato, virou a tábua de salvação.

Esse tempo não volta mais, muitos personagens dessa história não estão mais entre nós, mas sinto a presença deles. Ao fechar os olhos posso enxergar o presépio montado na sala, posso ouvir o burburinho das vozes e as músicas natalinas saindo da picape Phillips de minha tia Marly, posso sentir o sabor da comida colocada à mesa e a alegria no semblante de cada um.


Mas, quando abro novamente os olhos tudo isso se dissipa como uma nuvem e a realidade, cruel e implacável, me devolve ao tempo atual. Me sinto órfão, sem forças para prosseguir minha caminhada. Mas basta olhar para minha pequena Mariane, companheirinha de todos os momentos, e minhas forças se renovam.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Retalhos de bala

Sou de um tempo em que as casas tinham o teto alto e as lâmpadas ficavam penduradas pelo fio de eletricidade. Tempo em que eram poucas as construções em estilo moderno. A maioria delas tinha a mesma aparência e no interior os móveis e utensílios também não primavam pela beleza.

Naquele tempo em que aparelhos de TV eram raridade não havia muito o que se fazer à noite. Em geral as pessoas costumavam sentar-se em cadeiras colocadas na calçada após o jantar e ali ficavam horas colocando os assuntos em dia.

Minha família não era diferente. Minha avó materna, minha mãe e meu pai gostavam de ficar conversando por longas horas, aproveitando a brisa da noite.

Lembro bem que em muitas dessas noites o programa mudava e meus pais acompanhavam minha avó nas visitas que ela fazia a um tio de minha mãe. Eu e minha irmã mais velha também fazíamos parte da comitiva.

José Martellini, cunhado de minha avó, residia na Manoel Pereira em uma casa bem antiga. Acometido por um derrame, sem poder deixar o leito, as poucas visitas que recebia serviam para mudar um pouco a rotina daquele senhor que eu não conheci, embora sempre acompanhasse as ditas visitas.

Lembro que enquanto minha avó e meus pais entravam no quarto para levar um pouco de conforto àquele senhor, eu, um menino magricela de orelhas grandes, e minha irmã Vera, quatro anos mais velha, ficávamos ali naquela sala aguardando pela recompensa por nos comportarmos de forma educada. Ficávamos ali, naquele sofá surrado pelo tempo, imóveis pela ação das sombras que a luz da lâmpada fraca que pendia do teto provocava nos objetos espalhados pela sala.

O tempo se arrastava e a visita durava uma eternidade para aquelas duas crianças. Nossa agonia terminava quando, finalmente, a porta do quarto se abria e, junto com minha avó e meus pais, vinha tia Vicência, irmã de minha avó. Em suas mãos estava o que esperávamos enquanto permanecíamos ali naquela sala.

Cada um de nós recebia uma pelota colorido, formada por retalhos de bala de todas as cores possíveis e imagináveis, produto do que sobrava na fábrica de balas Zanovello.
A mistura de sabores ainda está guardada na minha memória e posso sentir cada um deles a cada lembrança daqueles tempos. Íamos embora para casa, felizes com o presente e, principalmente, por ter cumprido mais uma das visitas àquela casa repleta de sombras e objetos estranhos.

Esse tempo não volta mais, mas a lembrança dele está viva e bem guardada em meu baú de memórias.

A quarta série ginasial

Faz tempo que isso não ocorre, mas um tempo atrás eu vivia sonhando que estava nas dependências da escola onde cursei o ginasial e também ...