quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Esse menino vai ser padre

Sou de um tempo em que ter um padre na família era como uma graça recebida dos céus. Cresci acreditando nisso e assim penso até hoje.

Mas naquele tempo essa dádiva era ainda mais valorizada. Afirmo isso com a certeza de quem teve esse privilégio desde que nasceu.

Cresci tendo um tio seminarista, que infelizmente partiu desse mundo pouco tempo depois de sua ordenação. Além de ter inúmeras qualidades como homem, tio Zé Rubens era também meu padrinho.

Quando foi pedida sua presença no andar superior eu não era mais um menino magricela de orelhas grandes. Aos 15 anos já era um adolescente cheio de sonhos.

Lembro bem que, certo dia, com a família ainda vivendo a dor da perda, fui interpelado por minha avó paterna e por uma religiosa que atendia por Irmã Mariana. As duas queriam porque queriam que eu seguisse a carreira sacerdotal como forma de suprir a ausência de meu tio querido. Claro que declinei daquele ‘convite’ por entender que para tanto havia a necessidade da vocação.

Sempre acreditei que a vocação, para qualquer caminho na vida, nasce com a pessoa. E o exemplo maior disso vivia bem próximo.

Afinal, cresci ouvindo que o menino que minha mãe havia amamentado quando eu nasci e que para todos nós era como se fosse da família seria padre. De fato, todos os caminhos levavam meu ‘irmão de leite’ ao sacerdócio.

Sua devoção, seu jeito de ser e pensar indicavam que aquele menino seria um padre. Ele sim tinha vocação, tinha nascido para aquilo.


E assim acabou ocorrendo. O menino, de nome José Eduardo, amamentado por minha mãe, cresceu, ordenou-se padre e hoje, com as barbas brancas apesar de ainda estar na casa dos 50, já completou 25 anos de vida religiosa.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O amigo da onça

Sou de um tempo em que o ensino público superava, de longe, o particular. Ao contrário do que ocorre na atualidade, estudava em escola particular quem era jubilado da escola pública.

Naquele tempo, quem estava prestes a completar sete anos já rumava para os bancos escolares para o aprendizado que nunca mais seria esquecido. Um mundo de letras, números, cores e desenhos, totalmente novo para aquele menino magricela de orelhas grandes.

Lembro bem de minha passagem pelos quatro anos de grupo escolar. A pequena distância entre minha casa e o Júlio Mesquita era cumprida pelo escadão da ladeira São João.

Foram quatro anos de conhecimento para aquele menino sempre atento as novidades. As notas altas no final de cada semestre revelavam que o aprendizado estava sendo absorvido de forma satisfatória.

Algumas passagens ficaram guardadas em um canto do meu baú de memórias. Mas foi um fato ocorrido já no quarto ano do primário que ficou marcado para sempre em minhas recordações. Sempre que vou ao velho Júlio Mesquita para cumprir meu dever de eleitor a cena volta e tudo que ocorreu naquele dia revira minha memória, avivando cada segundo como se tudo estivesse acontecendo novamente.

Apesar de ser um aluno dedicado e sempre tirar notas altas, naquele dia cometi um erro fatal para os moldes rígidos do ensino da época. Um erro que poderia ter sido evitado.

O dever de casa passado pela professora Ivone Pegorari Vieira era escrever uma composição sobre um passeio nas férias. Por algum motivo eu havia esquecido de escrever a composição.

Quando fui escalado para ler meu dever de casa um frio percorreu minha espinha, pois sabia que alguma coisa ruim estava para acontecer. Lembro bem que minha carteira era na primeira fila e do meu lado estava o Lula. Não o presidente, mas o Luís Carlos Santa Luzia.

Quando ouvi meu nome proferido pela professora pensei rápido e abri o caderno em uma folha em branco. Passei a ler uma composição inexistente, deixando minha imaginação fazer o serviço que eu não havia feito em casa.

Talvez meu senso jornalístico já estivesse presente e minha interpretação corria da melhor maneira possível, até ser delatado pelo colega de carteira. ‘Professora, não tem nada escrito no caderno dele’, disse o amigo da onça.

Aquela frase gelou minha alma e temi pelo pior. E ele veio de uma forma cruel. Depois de constatar que eu havia tentado burlar as regras inventando uma composição de cabeça, a professora reagiu prontamente e aquela mão veio como um bólido em minha direção.

Imediatamente senti a dor do tapa no lado direito do rosto. Mas senti muito mais a vergonha que passei pelo duro castigo que me foi imposto.

Quase cinco décadas depois ainda consigo ver tudo aquilo novamente. São fatos que teimam em retornar a cada lembrança dos meus tempos de Júlio Mesquita.


Fatos que ficaram gravados na memória daquele menino magricela de orelhas grandes. E a lembrança deles dói tanto quanto o tapa que deixou meu rosto marcado pela força daquela mão impiedosa.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Brincar de cor

Sou de um tempo em que um simples brinquedo de madeira ou plástico já fazia uma criança feliz. Um tempo em que jogos eletrônicos, videogames e outras parafernálias eram apenas projetos futuros.

Lembro bem de muitos brinquedos que tive. Cada um com sua peculiaridade.

Mas, nem sempre eram os carrinhos, jogos ou mesmo a bola que atraíam aquele menino magricela de orelhas grandes. Muitas vezes, olhar pela janela do banheiro de casa e ver as casas que compunham o cenário à minha frente era uma atividade mais atraente.

Pode parecer um tanto quanto estranho uma criança gostar de ver casas e suas diversas cores, mas talvez pode sido ali, naquela janela, que minha predileção por números e estatísticas tenha começado. Ficava ali, olhando aquelas casas no Cubatão, contando quantas eram amarelas, quantas tinham a parede pintada em azul, verde ou outra cor qualquer .

Invariavelmente a brincadeira de contar as casas de cada cor era sempre feita a dois. Minha mãe, com paciência de Jó, estava sempre pronta para me fazer companhia.

E, brincar de cor talvez seja hereditário. Depois de tantos anos, com os cabelos já pintados pelo tempo, minha relação com as cores continua, mas de uma forma totalmente diferente.

Minha tarefa agora é árdua, parecida com aquela que minha mãe realizava, mas muito prazerosa. A cada convite da Mariane, minha pequena de quase dois anos, para brincar em seu quarto, já sei que vou viajar no tempo e vislumbrar aquelas casinhas e suas cores que me fascinavam.

Na sua simplicidade de criança, chamar o pai para brincar de cor é sua diversão preferida. Passo horas sentado no tapete com seus lápis coloridos e a cada resposta correta sobre a cor do lápis em minha mão é um prêmio para quem já imaginava passar pela vida sem ter o privilégio de ser pai.

Vê-la se ocupando com as cores é um bálsamo que cura qualquer ferida aberta pela ação do tempo. Ficar ali, sentado ao seu lado, ao contrário de ser um incômodo para o esqueleto de quem já fez a curva dos 50, é uma viagem até a janela do banheiro de minha casa na Comendador João Cintra.


Olhando para aquela garotinha compenetrada acabo enxergando um garotinho com os olhinhos buscando cores e mais cores entre as casinhas no longínquo alto do Cubatão, pertinho da mata que existia onde hoje está o Cemitério da Paz. Segundo minha mãe, era lá naquela mata que os urubus pousavam para descansar.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Retrato do tempo

Sou de um tempo que as fotos em preto e branco retratavam a vida em família. Diferente dos dias de hoje, em que as digitais e os celulares facilitam a tarefa de quem gosta de registrar fatos e passagens, naquele tempo as famílias costumavam perpetuar os momentos importantes com a presença de todos os membros, sentados ao redor dos patriarcas.

Comparo nossa passagem pela vida a essas fotos. Quando se é criança os personagens presentes na foto compõem a família que nos rodeia. Mas, aos poucos, cada figura daquelas retratadas na fotografia vão sumindo, pouco a pouco, deixando apenas os rastros de boas lembranças.

Minha fotografia genealógica sempre foi repleta de personagens. Uns mais próximos, outros, nem tanto, mas sempre presentes na vida daquele menino magricela de orelhas grandes.

Cada personagem que o passar dos anos apaga se torna um desfalque que nos deixa órfãos de vida em família. Afinal, pessoas que gravitam ao nosso redor durante a infância são como pontos de apoio durante nossa caminhada.

Meu retrato do tempo já está bastante desfalcado. Olho para ele e vejo apenas vazios, antes ocupados por avós, tios, pais e primos, que hoje figuram em outro retrato. O retrato das boas lembranças, que nem mesmo o tempo consegue esvaziar.

A vida nos ensina a dura realidade da perda. A cada figura que se apaga, um pouco de nós segue com ela. São como golpes de punhal que perfuram e dilaceram nossa alma.


Por isso, de vez em quando, corro os olhos da mente pela foto para ver se ainda estou nítido nela ou se minha figura está se tornando opaca, sem brilho e desfigurada. E é nesse instante que um calafrio percorre o corpo de alto a baixo e me faz sentir que nada somos além de meras figuras em um retrato do tempo.

A quarta série ginasial

Faz tempo que isso não ocorre, mas um tempo atrás eu vivia sonhando que estava nas dependências da escola onde cursei o ginasial e também ...