segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O menino que costurava bolas

Sou de um tempo em que as dificuldades impostas pela vida assolavam grande parte das famílias. O sustento da família geralmente era de responsabilidade do homem da casa e os filhos, muitas vezes ainda crianças, eram colocados no mercado de trabalho para reforçar o orçamento.

Naquele tempo, quando eu ainda um menino magricela de orelhas grandes, com oito para nove anos, havia um garoto, um pouco mais velho, que retratava bem esse quadro. Embora ainda um menino, com sonhos de criança, não media esforços para auxiliar no sustento da casa.

Não o conheci daquele tempo, mas sei que sua tarefa era árdua. Dividia seu tempo entre a escola, as brincadeiras com os meninos da vizinhança, nas proximidades de sua casa, ali na Visconde de Cairú, no início da Vila Bazani, e a tarefa de costurar bolas de capotão.

Não era uma tarefa fácil, mas era a maneira que ele encontrou para ajudar seu pai, o ‘seo’ Benedito, no sustento da casa. Além disso, costurando as bolas para a fábrica Decar, de propriedade dos irmãos Décio e Carlito Nogueira, que ficava na esquina da João de Moraes com a Regente Feijó, embaixo do casarão dos Nogueira, conseguia o suficiente para o cinema do final de semana.

E era essa sua vida. Costurar bolas de capotão e sair para entregá-las na fábrica. Em uma das mãos o saco de bolas, na outra a mala de roupas que sua mãe, a dona Natalina, lavava pra fora e que ele entregava na casa do doutor José de Mello.

No caminho entre sua casa e o destino, havia sempre um tempo para passar em frente aos três cinemas da cidade. Na descida o primeiro era o Cine Teatro Américo Bairral.
Em seguida uma passadinha nos outros dois, que ficavam na praça central. Ali conferia os filmes que estariam em cartaz no Cine Rádio e no Cine Paratodos para, só depois, escolher a fita que veria no sábado, pois sabia que o dinheiro daria apenas para uma sessão.

Era um tempo difícil, mas aquele menino, talvez tão magricela quanto eu, era feliz com a única diversão semanal que tinha, pois sabia que em primeiro lugar vinha sua família. Ver os cartazes e escolher qual filme iria ver no sábado já bastava.

Mais tarde, já aos 14 anos, sua habilidade para costurar bolas foi reconhecida e aquele menino acabou contratado pela própria Decar, então instalada na Major David Pereira, e já de propriedade do Paulo Pereira da Silva e do Aloísio Victor dos Santos, como um funcionário da casa. Ali começava sua carreira como empreendedor.

Conheci esse menino bem mais tarde, quando já era homem feito e de barba na cara. Fui conhecê-lo já como empresário de sucesso, mas nem por isso acomodado.

Hoje, depois de tantos anos, vejo minha filha, que por sinal faz aniversário no mesmo dia que ele, chamá-lo carinhosamente pelo apelido que acabou virando sua marca registrada. Ouvi-la chamando-o por Mestre me faz entender que nenhuma luta é por acaso.


Daí, volto no tempo e entendo que perdi muito em não ter conhecido aquele menino que costurava bolas. Talvez, se tivesse visto de perto sua luta, poderia ter aprendido um pouco mais com a vida.

2 comentários:

Luciana disse...

Parabéns, vc escreve muito bem!

Humberto Butti disse...

Obrigado por visitar meu blog e pelos elogios

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