Sou de um tempo em que a Sexta-feira Santa era algo sagrado. Um
dia para se recolher em casa e respeitar.
Lembro bem como era a rotina das pessoas
na Semana Santa. Lembro que meu pai, cumprindo as determinações da igreja,
participava da vigília noturna, velando o Nosso Senhor Morto.
Era um tempo em que havia respeito pelos
desígnios de Deus. A partir das três da tarde da quinta-feira tudo ficava
parado, como se esperasse o tempo passar e com ele chegasse o Sábado de
Aleluia.
Lembro que a partir das três da tarde da
quinta não se ouvia mais as buzinas os carros, as sirenes das fábricas, o apito
do trem ou o badalar dos sinos. Tudo era um silêncio só e nós, crianças,
obedecendo as regras, nem às ruas saíamos.
Ao contrário do que acontece nos dias de
hoje, o silêncio respeitoso imperava. As pessoas não comiam carne vermelha de
forma alguma e não havia a algazarra que se tem hoje, com carros com o som nas
alturas, as buzinas soando e até o sino da igreja repicando firme e forte.
Às vezes, paro e penso se tudo que era
certo no meu tempo de criança já não vale mais. O respeito pelas tradições da
Igreja já não existe mais, principalmente no seio das famílias e isso dói no
fundo da alma de quem sempre acreditou nisso tudo.
Mas, voltando ao tempo que realmente
interessa, lembro bem de como era a Semana Santa para mim, um menino magricela
de orelhas grandes. A partir das três da tarde da quinta-feira tudo parava e só
restava aguardar por cada momento da Semana Santa.
Na Sexta-feira da Paixão o ritual
consistia em visitar o Senhor Morto na Matriz e acompanhar a Procissão do
Enterro, como dizia minha mãe. Claro que no meio de tanta religiosidade havia o
respeito às determinações da Santa Igreja.
Como não era permitido o consumo de carne vermelha, minha mãe
preparava o bacalhau ensopado com batata e o tradicional bolinho de bacalhau. À
noite, depois da procissão, íamos para casa e aguardávamos a chegada de meu pai
com aquele embrulho envolto em papel cor-de-rosa, contendo um prato de papelão
recheado de sanduíches de aliche comprados no Bar Central ou no Brasília Bar.
Ainda sinto o sabor daquela iguaria consumida apenas uma vez por ano.
Bons tempos aqueles. Tempos em que a tradição era algo importante
na vida das pessoas, assim como o respeito a tudo que era sagrado.
Lembro que no Sábado de Aleluia a tradição
mandava que se malhasse o Judas ao meio-dia. Era o momento em que os rojões
espocavam no ar anunciando que a alegria pela volta de Jesus estava próxima.
Na manhã do domingo minha família acordava
cedo, ainda de madrugada, para acompanhar a Procissão do Encontro. Minha
ansiedade era grande pela hora de voltar para casa e ganhar meu ovo de páscoa.
A Páscoa era comemorada na casa de meus
avós paternos, que ficava na rua João Pereira, nas proximidades do Bairral, com
a presença de todos os integrantes da família. Como era bom aquele tempo e como
seria bom poder reviver tudo aquilo.
Hoje, quando ouço o sino repicar na
igreja, mesmo no período de silêncio da Semana Santa, entendo que aquele tempo
nunca mais irá voltar. Sinto que a magia dos bons tempos foi quebrada e nunca
mais nada será com antes.
Isso faz meu coração doer de tristeza. E
essa dor aumenta cada vez que lembro que nunca mais terei os bolinhos de
bacalhau de minha mãe para saborear ou os lanches de aliche, envoltos em um
embrulho cor-de-rosa, que meu pai fazia questão de comprar para a nossa noite
de Sexta-feira Santa.
Que pena que tudo isso acabou. Que pena que não tenho mais ao meu
lado meu pai e minha mãe. E, que pena que não exista mais o respeito por parte
das pessoas pelas tradições religiosas. Que pena...
2 comentários:
Meus olhos ficaram marejados...
Vc retratou fielmente neste texto o que está retido em minha memória. Parabéns pela beleza de imagens!!
Obrigado, é o que tento fazer sempre. Só assim consigo ter de volta tudo aquilo.
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